quinta-feira, 28 de abril de 2011

Outras histórias marajoaras

Não se meta na sorte alheia!


Seu Sumano, como bom  marajoara, sempre gostou de uma sesta depois daquele almoço reforçado, aquele “cardo” de peito de boi.  Pegava  sua rede, descia pra debaixo da  casa... É isso mesmo, não é metáfora não! É que aqui no Marajó, na região de campo dessa imensa ilha, a maioria das casas é do tipo “caneluda”, casas altas, onde uma pessoa  de certa altura pode andar tranquilamente debaixo sem encostar a cabeça no assoalho. Essas casas são construídas assim, porque no “inverno brabo” o campo é inundado pelas águas, por isso elas têm de ser bem altas.
Pois bem! Seu Sumano gostava de “tirar uma perereca” depois do almoço.  Não que fosse  preguiçoso. Longe disso. Era trabalhador. Mas moramos praticamente sobre a linha do equador, a região mais quente do planeta e  com esse tempo quente e abafado é quase que sagrado “esticar” um pouco as costas após a refeição principal do dia. Ele achava, e com toda razão, que depois de tirar leite da búfala, quatro e meia da manhã, fazer queijo, despescar a rede no rio, cuidar de porcos, galinhas, cavalos e muitas outras tarefas durante a parte da manhã, ele podia descansar um pouco. Vocês não acham também? Ele estava corretíssimo! Além disso, ainda tinha aquelas vacas fujonas que atrasavam seu trabalho rotineiro, pois tinha que  buscá-las em outras fazendas distantes da sua “Fazendola”. Ele tinha uma pequena propriedade, chamada Retiro Bom-que-dói.
No entanto não era o que pensava seu primo, conhecido como Tio Branco, “lá das bandas” da Capital do Estado. Ele achava que seu primo marajoara era muito acomodado e quem sabe, em seus pensamentos mais íntimos, um  preguiçoso.
Certa vez, quando Tio Branco veio de Belém com sua família no seu carrinho popular – e que aqui dizia “bão” – por ocasião do Círio do lugar onde morava Seu Sumano, chamou-o e lhe disse – usando logicamente um eufemismo – que  era preguiçoso.
- Primo, eu sou um cara trabalhador, não durmo depois do almoço, porque tempo é dinheiro! Tempo é dinheiro, primo!
Logo ele que também nunca foi chegado ao trabalho, tem as coisas porque herdou de sua mãe. Mas  Seu Sumano nem  ligou, ou melhor, nem entendeu a frase dita por Tio Branco, “tempo é dinheiro, primo”.
Durante o tempo que passou com primo, depois de um café da manhã,  regado a “coalhada”, queijo, ovos de galinha caipira, Tio Branco via seu parente sumir e só chegar na hora do almoço. Ficou inquieto ao ver todo dia a mesma cena: Seu Sumano descendo a escada de sua casa e atando sua rede para dar aquela sesta.
Certo dia vendo aquela arrumação voltou a insinuar dizendo:
- Primo, tempo é dinheiro, hein!
- Como assim Tio Branco?
- É fácil entender o que eu digo!
- Então diga homi!
- Toda vez que o senhor pega essa sua rede e vai se deitar, você poderia estar fazendo outra coisa, qualquer coisa pra aumentar sua renda no final do mês. Dormindo assim não vai ter dinheiro nunca!
- Não quero  muito dinheiro não, quero viver tranquilo. Acho que quem tem muito dinheiro nem dorme direito só pensando dele!
- Deixa de Besteira! Hoje só vive bem quem tem Money!
- Mã...  O quê? Que é isso já?
- Dinheiro meu primo, dinheiro, dinheiro!
Depois que seu primo Tio branca fora embora, o bom marajoara voltou a sua rotina de trabalho e nem pensou mais no que disse seu primo. Mas num dia, assim do nada, Seu Sumano se lembrou das ditas palavras: “tempo é dinheiro”. Ficou pensativo, refletiu, achou uma besteira  ganhar muito dinheiro, nem tinha como gastar tal fortuna. Desistiu de pensar nisso. Outro dia voltou a pensar. Se eu tiver dinheiro posso mandar um dos meus filhos estudar na capital, quem sabe Chiquinho não vira médico! Decidiu tomar a ideia de seu primo como fosse sua. A partir de amanhã não durmo mais depois da boia, mudou de atitude o homem.
No dia seguinte acordou esperançoso, com a mudança em sua vida. Fez todas as suas tarefas sempre na mesma sequência. Chegou a hora do almoço. Feijão da colônia com charque, bucho e tudo mais, carne assada de panela, apurada na gordura, arroz paraense. Acabou o almoço. Por força do bendito hábito pegou sua rede e quando ia descendo lembrou-se da mudança. Não, hoje não vou dormir! Vou arrancar umas “sarsas”, para plantar milho! Pensou alto Seu Sumano.
Deixou sua redinha e saiu para limpar uma área perto da casa, que ficava fora da cerca. Foi se arrastando, com o bucho “por ali”. Tirou uns dez pés ou um pouco mais que isso da planta cuja raiz e extremamente segura na terra. Tinha que fazer muita força. Quando, de repente sentiu fortes dores no estômago. Tentou se equilibrar. Sua vista escureceu.  Seu filho Chiquinho que olhava orgulhoso o pai do pátio de casa viu seu velho cair e chamou sua mãe. Correram pra lá. Tentaram reanimá-lo, contudo foi em vão. Ele pegou uma congestão tão forte que não resistiu e morreu logo em seguida.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Memórias

Velha infância

De vez em quando gostaria
De voltar a ser criança!
Que rotina, quem não queria?
Difícil rotina! Que lembrança!

Brincar de bola todo dia;
Brincar peteca: valendo carteira de cigarros,
no triângulo, na bozoca, paga cuspe;
Brincar de polícia e ladrão;
Brincar de betz ou taco;
Brincar de tec-tec;
Brincar de rodar o pião na mão;
Brincar de piras: esconde, pega, alta, cola;
Brincar com os amigos da escola
Brincar de bandeirinha;
Brincar de pula corda;
Brincar de fura-fura;
Brincar de corrida de tampinha;
Brincar de tomar banho no rio
Brincar de brincar, brincar de correr;
Brincar de tomar banho de chuva;
Brincar de barco com um pedaço de madeira;
Brincar de cair. Se ferir e passar terra pra sarar rápido
Brincar, brincar, brincar... De qualquer maneira!

É...! É muito bom ser criança!
É pena ver hoje em dia
Crianças cheias de alergia
Que nem sabem
Que brincadeiras são essas.
Se soubessem ficariam alegres a beça.


quinta-feira, 21 de abril de 2011

Outras histórias majoaras


“O se faz aqui, ainda se paga aqui!”

Não sei por que quando se é criança a gente gosta de desafiar os mais velhos. Talvez seja o fato de acharmos que sabemos aquilo que não sabemos. Isso é completamente normal para o ser humano, pois nós aprendemos com nossos erros. Não que desafiar outros signifique, propriamente, um erro, às vezes é necessário o confronto, o choque de opiniões para se acabar com certas injustiças. Entretanto, certos afrontamentos com os mais velhos podem mais tarde, muito mais tarde, se tornarem castigos. Como diz o velho ditado popular: “pagar na mesma moeda”. Aconteceu algo parecido aqui no Marajó.
Tio Juca era um senhor de idade e com dificuldade para enxergar. Numa manhã chuvosa, ele foi a um comércio, no qual trabalhava um rapaz esperto e “cheio de graça”. O ancião chegou ao estabelecimento, tirou as botas para poder entrar, pegou um tabaco de onça na prateleira empoeirada e foi pagar.  Meteu a mão no bolso da camisa com aquela dificuldade que todo idoso tem, puxou o dinheiro do bolso, trouxe a mão para bem perto do rosto, apertou os olhos para ver melhor a nota. Dez reais. Foi aí que o rapaz confirmou o que havia dito anteriormente a seu respeito. Falou, com ar de deboche, para o pobre velho:
- Ei tio, eu pensei que pra gente enxergar, a gente abria o olho e não fechasse!
No exato momento em que o jovem acabou a caçoada, Tio Juca lembrou-se de um caso que acontecera com ele há muito tempo atrás.
Tinha mais ou menos dez anos quando aconteceu o tal caso.  Seu pai pediu-lhe para ir à taberna comprar uns condimentos que faltavam para o almoço. O menino retrucou o mandado, pois estava saindo com uns amigos para jogar bola. O pai mandou a segunda vez, já com a ameaça de que se não fosse levaria uns cascudos. Revolveu ir. Batia os pés com força no chão, resmungava coisas que ninguém nesse mundo entendia e foi andando. Dizem que as crianças marajoaras são mais arredias e teimosas que outras e que gostam de se aventurar em meio aos búfalos, tomar banho em rampas – grandes buracos feitos por máquinas para tirar piçarra e que são inundadas no inverno – e isso é bem verdade. Nossos “bacuris” são, certas vezes, mal criados, mas são apenas crianças. Nada que umas boas palmadas, na hora certa, não resolvam.
 Bom! Seu pai havia pedido que comprasse uma cabeça de alho, um pacote de pimenta-cominho, uma quarta de óleo, uns ovos e dois quilos de farinha.
Chegando lá fez o pedido e aguardou com aparente impaciência a paciência secular do taberneiro, um senhor de idade e com certa dificuldade de enxergar. Talvez vós não saibais da dificuldade de hoje – século XXI – para se conseguir um médico oculista aqui na nossa região, imaginem naquela época. Quando se quer resolver o problema da falta de óculos, procura-se um parente que tenha uns usados, sem uma perna, talvez, ou bastante danificados e que, às vezes, nem é o grau que a pessoa precisa, mas coloca-se um elástico de roupa e pronto já dá para “quebra o galho”. Isso era o que acontecia com o pobre senhor taberneiro. Os óculos caiam-lhe do rosto. Sabe-se lá de quem era aquele fundo de garrafa o qual usava. Juquinha perscrutava o semblante do velho e não entendia, ainda, do assunto. Achava que o velho estava fazendo manha ou era lerdo ou preguiçoso. Será que esse velho lerdo vai demorar, tenho que voltar pro jogo. Pensava com gestos e atitudes.
Depois de ser atendido, puxou do bolso as moedas que lhe foram dadas e que somavam cinquenta cruzeiros. Vou dar só a metade pra esse velho! Ele não enxerga mesmo! Pensou o menino, percebendo que a deficiência do velho taberneiro era muito mais séria do que pensava. Já dava para comprar um pião daquele rachador com os vinte e cinco que sobravam. Acho que vai dá certo, elucubrou o menino. Então colocou em prática o que havia planejado. O míope taberneiro pegou as moedinhas e, para ver melhor o quanto o moleque havia lhe dado, trouxe a mão para perto do rosto. Foi nesse momento que Juquinha, percebendo a chance de enganar definitivamente o pobre senhor, soltou a frase debochante:
- Eu pensei que pra gente vê, a gente abria o olho e não fechava! E deu uma gargalhada assustadora!
O pobre velho envergonhado guardou as moedas na gaveta e disse que estava tudo certo.
Juquinha saiu feliz da vida com o pequeno golpe que aplicara. Deixou as comprinhas na sua casa e foi se encontrar com seus amigos. Chegando lá, se vangloriava do feito.  Para ele, um ato heróico clássico.
Mas voltando aos dias atuais! Tio Juca saiu do comércio, foi para sua casa e pediu para o neto conferir o troco que recebera do moço do caixa. E pra sua surpresa, havia uma nota de dois reais e uma moeda de cinqüenta centavos, e o tabaco de onça custava dois e cinquenta.



terça-feira, 5 de abril de 2011

Memórias

A primeira “mucura” a gente nunca esquece!

A primeira vez que vim a Retiro Grande foi no ano de 93, não sei bem o mês, mas quando lembrar citarei na próxima memória. Vim com alguns amigos que estudavam comigo em no Ademar de Vasconcelos, fazíamos o 1º ano.  Um deles era filho daqui, então foi fácil descobrir o “caminho das pedras” para esse paraíso de tranquilidade.
 Lembro como se fosse hoje. Embarcamos em um ônibus o qual todos os dias fazia viagem para esses lados.  Batizamo-o de “transamarrado”, já que era um ônibus muito velho, todo amarrado com tiras de câmara de bicicleta em todas as partes, aquelas mesmas que usávamos para amarrar nossas baladeiras.  Tinha que ser assim, quem em sã consciência iria colocar, naquela época, um ônibus novo para fazer essa linha com as péssimas condições da estrada. Vir para cá, nesse ônibus, era uma aventura sem igual. Nós éramos cinco e nenhum de nós, exceto nosso anfitrião, tinha visitado esse lado do Marajó. Sabíamos que era um lugar de campo, onde as pessoas viviam da agropecuária, que tinha muitas fazendas e, claro, muitas meninas bonitas.
Saímos umas onze horas rumo ao nosso destino. A viagem era longa devido às muitas paradas que íamos fazendo nas diversas localidades, tanto de Salvaterra, quando de Cachoeira, mas era vista sempre aquele ar de aventura. Chegamos umas duas horas da tarde na casa de nosso amigo e anfitrião. Deixamos nossas coisas num quarto e fomos almoçar. Almoçamos aquele frito do vaqueiro. Passados alguns minutos tomamos aquele leite fervido com farinha d’água e uns pedaços de queijo do Marajó. Descansamos um pouco e lá pelas quatro horas conseguimos arrumar uns cavalos para montar. Eram legítimos cavalos marajoaras.  Eu não sei bem diferenciar essas raças, mas os marajoaras são um pouco menores do que os outros, mas em compensação são muitos resistentes. Arranjamos um “cardão” e um “melado”. Não eram bonitos e tive a impressão de serem de boa idade, mas como diz o ditado: “cavalo dado não se olha o rabo!”. Saímos para dar umas corridas pelos os campos de Retiro Grande, campos limpos, que fascinavam nossos olhos. Ainda não tinham esse emaranhado de cercas. As casas, umas longe das outras, pareciam estar dentro de um mesmo quintal e por muito tempo continuaram assim, até chegar a ganância e a ambição no coração de algumas pessoas. Bom! Mas não vim falar disso! Como estava dizendo! Pegamos esse dois cavalos para dar algumas voltas. Caímos umas quantas vezes. Brincamos de guerra de merda de boi seca. Foi uma diversão. Tudo era novo. Aquela quantidade de búfalos pastando logo ali pertinho da gente, gado comum, cabras, bodes, pássaros de todos os tipos. Um lugar tão excepcional que me fez pensar: “não teria dificuldade nenhuma de um dia morar aqui”.
Quando chegou a noite soubemos de uma “mucura” – pequena festa arrumada as pressas com o intuito de vender algumas cervejas – que ia acontecer ali perto de onde estávamos. Seria a oportunidade de conhecer as tais meninas de Retiro Grande. Caminhamos ruma à festa, mas o mais interessante era que não ouvíamos quase nada da música que a animava. Íamos nos aproximando da festa e nada de ouvirmos um ruído sequer. Entramos na festa e percebemos um som baixinho, bem diferente daquele que tocava lá em Salvaterra, na quadra do Arco-íris. A aparelhagem era um micro system, duplo deck, e o DJ se virava com as fitas para que a música não parasse de tocar. Pedimos uma bebida e ficamos apreciando o movimento. Olhávamos para todos os lados e nada de enxergarmos uma presença feminina na festa. Até que avistamos uma, mas ela estava cercada por uns vaqueiros, que a tiravam para dançar toda hora. Não quisemos entrar na disputa, afinal não éramos do lugar e isso poderia nos causar algum transtorno. Ficamos esperando aparecer mais algumas meninas, porém fui tudo em vão. Nada.
            O melhor de tudo isso foi que nesse dia conhecemos a hospitalidade do povo Cachoeirense que nos tratou muito bem. O dono da festa nos ofereceu umas bebidas grátis e um tira-gosto de porco. Até quem não comia carne de porco, nesse dia comeu. A festa chegou ao final e mais nenhuma mulher veio dar o ar de sua graça, só aquela que dançava com os vaqueiros. Saímos decepcionados, mas felizes, afinal participamos de nossa primeira “mucura” no Marajó.