Outra história de matintaperera
Sempre escuto por aí muitas histórias sobre matintaperera. Que uma foi buscar tabaco na casa de fulano, depois que ele a ouviu assobiar em cima de sua casa. Que outra, perdida deu de cara na fiação elétrica e foi internada lá na cidade Soure. Que pegaram uma quando a viram, no início do processo de transformação, se enrolando num campo de futebol lá em Salvaterra. Mas essa que lhes contarei aconteceu numa localidade aqui em Cachoeira do Arari. Além de interessante é muito divertida.
Eram dois irmãos. Vou chamá-los de João e Maria em homenagem àqueles personagens daquela famosa historinha infantil e, também, porque conheço duas crianças muito próximas com esses nomes. Ela três anos mais velha que ele. Crianças com cara de crianças marajoaras, corajosas e destemidas, porque se não fossem essa história não aconteceria.
Eles tinham uma avó que todos diziam se tratar de uma matintaperera velha. Uma senhora acima de qualquer suspeita. Cuidava de todos da casa, ensinando os valores familiares, ia para igreja aos domingos e participava de todas as festividades dos Santos. Além disso, sabia fazer remédios caseiros, garrafadas milagrosas, uma pessoa acima de qualquer suspeita incapaz de fazer mal a qualquer ser humano.
Sempre que as duas crianças ouviam alguém, um colega do grupo onde estudavam, por exemplo, mencionar que sua avó era matinta, procuravam defendê-la, dando toda aquela justificativa que citei no terceiro parágrafo dessa história. Entretanto, ficavam com aquela dúvida. Será que nossa avó é uma tintaperera, Maria? Indagava o irmão mais novo.
Num determinado tempo, já era corriqueiro os boatos sobre a velha. Todos os dias, as pobres crianças ouviam duas ou mais piadinhas. Quando é que tua avó vai visitar as setes cidades próximas daqui, Maria? Ou. É verdade que quando ela vai virar matinta ele tira a cabeça e a coloca sobre a mesa? Ou. Ela usa um apito de juiz de futebol para dar aquele assobio medonho? Ou ainda. Lá vem os herdeiros da matinta! Até que um dia resolveram tirar a prova, toda dúvida que eles tinham a respeito da avótinta. Bolaram, então, um plano:
- Joãozinho, vamos ficar de vigia! Cada dia um de nós fica acordado até meia noite para ver se a vó vira mesmo matinta. – É que dizem que a matintaperera começa seu processo de transformação nesse período das onze e meia para meia-noite. E só volta cinco da manhã –. O plano da menina estava correto. Lá pelo terceiro dia de vigília, Maria ouviu sua avó se mexendo na rede e logo se pegou a observar o movimento. A velha levantou da rede. Maria bateu na rede do irmão que dormia o sono dos justos.
- A vovó se levantou. Murmurou a menina. Vamos seguir ela! Fizeram. A velha desceu a escada da cozinha que dava acesso ao terreiro. Olhou para os lados, como estivesse averiguando se não havia ninguém a observá-la. É agora Maria que ela se transforma, é agora Maria. Dizia aflito, porém bem baixinho, o menino. A velha se pôs atrás de um limoeiro baixinho e frondoso. É agora Maria, é agora! Não parava de falar o moleque. A velha, então, arriou as calças e pôs-se a urinar. Começaram a rir. Rápido a senhora levantou e foi ter com os moleques.
- O que é que vocês estão fazendo? Indagou a velha com um olhar sério no rosto.
- Nada, vó! É que eu tava com vontade de fazer xixi e chamei o Joãozinho pra vir comigo.
- Então façam as suas necessidades e entrem logo! Disse a velha.
Os dois urinaram sem ter vontade de urinar e entraram. Não foi desta vez que viram a avó se transformar e quem sabe um dia veriam.
Passaram-se dias. Já estavam cansadas de vigiar a velha e nada. Maria comentou:
- Não vou mais vigiar a vovó! Ela não é matinta não, João! Ela não é!
- É! Eu também acho que não. Confirmou o menino.
- Vamos deixa a vó em paz!
- É mermo, irmã!
E assim fizeram.
Longo tempo se passou, até que numa noite Joãozinho ouviu a velha se mexer na rede. Ela sentou-se na rede e começou a murmurar, bem baixinho, algo como se fosse uma oração. A velha pegou suas sandálias e as cruzou, deixando-as debaixo da rede. Saiu pé-a-pé, que nem dava para ouvir o ranger das tábuas do assoalho velho. Rumou para a porta da cozinha. Joãozinho bateu na rede da irmã e os dois observavam o movimento da velha. A senhora dirigiu-se em direção à porta da cozinha novamente, desceu a escada e rumo para o terreiro. De vez em quando dava uma olhada para trás. Se dirigiu para debaixo do lavatório. Sem nojo algum começou a se rolar naquela lama fétida – água suja, pois toda a lavagem cai ali –, dando início ao processo de transformação em matintaperera. Não me perguntem como sei disso, mas é esse o processo. Depois de se sujar bem na lama ela começou a girar e a se debater no chão. Enquanto isso as duas crianças escondidas, observavam pasmadas a avó fazendo toda aquela “misura”. Entretanto não esboçavam nenhum sinal de medo ou pânico. A cada giro que a velha dava no chão ia aparecendo alguma coisa em seu corpo. O cabelo já estava grudado no rosto como se fosse uma máscara negra, as unhas imensas e negras pareciam navalhas. Surgiram debaixo dos braços duas imensas asas que pareciam ser feitas daquela lona preta usada para proteger coisas da poeira. As asas chegavam ao pé daquele monstro, metade pessoa, metade bicho.
Quando estava pronta e aplumada para levantar voo, de súbito, Joãozinho pulou e subiu nas costas da velha e foi logo dizendo.
- Se a senhora vai visitar as setes cidades hoje, eu vou com a senhora!
A matinta surpresa olhou para o menino e respondeu:
- Não, meu neto! Você não pode ir comigo.
- Como não?
- Não tá vendo como estou? Tu não tem medo? Eu faço isso porque eu não tenho escolha! É o meu fado que tenho que carregar.
- Olha vó! Disse o menino. Eu não quero nem saber de fado, só sei que a senhora vai visitar as setes cidade mais próximas daqui e se senhora não me levar, eu vou contar para todo mundo que a senhora é matintaperera. Ainda tem outra coisa. Depois que a senhora me levar, a senhora vai ter que levar a Maria que tá bem ali. Apontando com o indicador para a menina que estava ainda escondida.
A avótinta, vendo que não tinha nenhuma saída, teve que ceder ao pedido do neto. E assim foi. A velha levantou voo com o neto nas costas. Ele ia em estado de graça. Mesmo sendo de noite ele conseguiu tirar grande proveito da situação e se divertiu a beça. Batia nas costelas da velha para ela voar mais rápido. Dava com os calcanhares no vazio da matinta para ela voar mais alto. Depois foi a vez da menina. Foi a mesma emoção e alegria.
Agora todas as vezes que a avótinta tem que se transformar em matintaperera, e isso acontecem uma vez no mês, na lua cheia, ela tem que levar os netos juntos. Senão ela correr o risco de ser descoberta em seu segredo.
Ah! Ia esquecendo. Agora toda vez que falam mal de sua avó, as crianças nem ligam. Sentem até orgulho da avó, pois sabe voar e reparte, mesmo que forçadamente, isso com os netos.