quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Outras Histórias Marajoaras

Outra história de boto

Imaginem a vida dos ribeirinhos marajoaras há mais ou menos meio século atrás. É, com certeza, igualzinho como nos dias atuais. Eles vivem a mesma tranquilidade, as mesmas dificuldades, as mesmas crenças, as mesmas histórias do imaginário amazônico, com: a do boto, a da cobra-grande, a do toco, a da iara e outras. Não pensem que essa gente parou no tempo, é que isso está enraizado em nossa cultura e já faz parte de nossas vidas, mesmo com a chegada da televisão, celulares e internet.
Por falar no imaginário amazônico lembrei-me de uma história que meu pai, assim como minha mãe, legítimos representantes do povo ribeirinho aqui do Marajó, me contou.
Tio Cristo e tia Mada eram recém-casados foram cortar seringa “lá pras bandas” do Rio Araticu, localidade do Município de Oeiras do Pará. Vida de “caboco marajoara” que vive da seringa não é nada fácil, morar no meio do mato, num “tapiri” – cabana coberta de palha e assoalhada com ribas feitas de açaizeiro, cercado de perigo por todo o lado, isolado de tudo e todos –, remar horas para se deslocar de um lugar para vender a produção de borracha. Acredito que poucos se aventurariam a tal situação. Mas o casal aceitou o desafio.  Levaram seu segundo filho, já que a  primeira falecera, e alguns poucos pertences.
Chegaram ao tapiri onde iriam passar um bom tempo, com esperança de fazer economia para comprar uma casa na cidade e criar dignamente seu filho e outros que viriam. Defrontaram-se com as dificuldades daquele árduo serviço, porém não desanimaram.
No dia seguinte Tio Cristo foi limpar a estrada a qual iriam trabalhar. Eram mais ou menos umas cinquenta árvores de seringa. Uma estrada sem nenhuma lógica, que cortava o mato em todas as direções, mas que tinha início, meio e fim. Foram necessários vários dias de limpeza a facão para poder, então, começar definitivamente a extrair o látex, cujo valor era altíssimo naquela época, valia ouro, para os donos dos seringais, não para os seringueiros.
Tia Mada ficava cuidando do seu rebento, limpando o terreno em volta do tapiri, pescando as margens do rio que banhava aquele lugar encantador durante o dia e assustador durante a noite.
Passaram-se alguns dias até as dificuldades aparecerem. A primeira delas a que mais nos interessa. Foi num dia em que o casal teve que se separar por falta de um elemento essencial na comida de bom marajoara e de todos os paraenses: a farinha d’água. Como tudo ali era distante, Tio Cristo teve que se deslocar a um lugar longe de onde estavam, onde funcionava uma pequena mercearia do patrão. Eram necessárias algumas horas de remo até esse vilarejo. Tinha que sair bem cedo para não perder o horário da volta, porque andar de noite no rio era muito perigoso. Tia Mada ficou receosa com o que podia acontecer na ausência de seu marido. Podia chegar alguém desconhecido, aparecer uma cobra-grande e “mundiar” os dois e engoli-los de uma só vez. Tudo isso passava pela sua cabeça e recomendou:
- Olha Cristovão, se não tiver farinha lá, vem te borá!
- Larga de medo! Aqui não aparece nada! Ponderou o marido.
- Eu é que não quero pagar pra ver! E foi se benzendo.
Então ele saiu para a viagem. Chegando lá perguntou se tinham farinha. Responderam-lhe que estavam se preparando para fazer. Tinham mandioca-mole, mas não tinham a mandioca crua.  Para quem nunca ouviu falar, a farinha d’água se faz juntando a mandioca que é colocada de molho até ficar mole, daí o nome, com aquela tirada na hora, que é limpa e ralada num catitu, um instrumento manual que serve para tritura a raiz da mandioca. Logo após, se junta as duas massas, até obter outra bem homogênea, colocando em seguida no tipiti para ser espremida e depois torrada.
Tio Cristo ficou cismado, pois havia uma boa quantidade de homens no barracão da farinha, mas não quis indagar. Perguntou onde era a roça e lhes indicaram o caminho. Foi. Chegou ao lugar e antes de entrar na plantação se benzeu, rezou uma simples oração e entrou.  Arrancou e colocou as raízes no mundé. Levou a primeira “carrada”, voltou e levou a segunda. Enquanto isso as horas iam se passando rapidamente e a sua esposa ficava preocupada lá no tapiri.
Cumprida a tarefa, começaram a descascar a mandioca sempre numa conversa amigável, como se fossem conhecidos de muito tempo. Lá pelas tantas, depois de umas boas cipoadas de aguardente, Tio Cristo foi indagado:
- Mas homi, tu tem espírito que te protege! Perguntou um dos moradores daquele lugar.
- Por quê?! Respondeu perguntando.
- Não rapaz, é que hoje se não fosse tu agente não ia comer farinha.
- Por que já, enton?
- É que quando a gente ia tirar a mandioca esse ai – apontando para um dos companheiros – arremedou uma aianga e não prestou mais, apareceu um pinto pelado que começou a varrer o fogo que ficava acesso em um barracão e começou a engolir os pedaços de brasa e foi tapa em todo mundo. Saímos de lá debaixo de peia!
- Mas foi rapaz! Olha, eu toda vez que entro num lugar que não conheço rezo o oficio de Nossa Senhora!
- Oficio de Nossa Senhora!
- É! Não tem visagem que goste de ouvir essa reza!
- Ah!  Tá explicado!
E assim a conversa foi se desenrolando, o trabalho sendo feito e o tempo foi correndo. Já era noite – umas sete horas – quando Tio Cristo saiu de lá. Pensava em como estava sua esposa. Devia está se tremendo de medo. Ô mulhezinha que tem medo de tudo. Ia remando e pensando.
Chegou ao tapiri. Encostou o casco na ponte e gritou para a mulher:
- Ei Maria!
Tia Mada ficou calada lá dentro. Sabia de todas as histórias de boto e sabia principalmente que quando ouve alguém chamar seu nome da beira do rio não se pode responder de primeira, pode ser o boto, que transformado em homem salta e seduz a mulher que responde. Tem-se que esperar ele chamar três vezes. Foi o que fez.
Tio Cristo chamou a segunda:
- Ei Maria!
Chamou a terceira. E só na quarta que obteve uma resposta:
- É tu Cristovão:
- Claro! Pensava que era quem! Respondeu o marido muito injuriado.
- O boto!
- Deixa de tolice e vem me ajudar com a farinha!
- Eu te disse que se não tivesse farinha era pra tu vir embora logo.
- Para com isso mulher! Num tá aqui a farinha! Vamo entrar que é.
Passados alguns minutos ouviram o barulho de alguém chegando ao porto, e logo gritando:
- Ei Maria!
Foi um espanto total. Quem seria àquela hora? Quem é? E foi saído o marido.
Então, ouviu-se um barulho de alguém caído na água. Tio Cristo queria ir  lá na beira da ponte ver quem era, mas a mulher não o deixou temendo alguma coisa. Eu vou lá, deixa eu ir lá, ver o que isso mulher!
- Não Cristovão deixa pra de manhã! E assim foi.
De manhã bem cedo foram ver de que tratava. Chegado ao porto avistaram uma outra motaria e dentro da mesma um chapéu e uma roupa branca.

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